André Bezerra Ewerton Martins
Juiz de Direito no TJ-MA e especialista em Direito Constitucional pela UNDB.
Este articulista teve a valiosa oportunidade de se manifestar neste periódico eletrônico sobre gratuidade da justiça como elemento indispensável à materialização da garantia constitucional de acesso ao Judiciário
Nos últimos dias, sejam em julgamentos monocráticos ou colegiados, bem como em diálogos travados com colegas magistrados, advogados e estudantes, surgiram questionamentos e a consequente demanda por aprofundamento quanto ao tema.
Entre as mais variadas manifestações percebidas, destacaram-se aquelas nas quais se questionam a natureza do benefício da justiça gratuita e a forma de compreensão, interpretação e aplicação da presunção legal do artigo 99, §3º do Código de Processo Civil.
Entendo ser necessário compreender que o pagamento das custas, despesas processuais e honorários advocatícios é a regra posta, sendo a concessão do benefício condicionada à insuficiência de recursos dos litigantes, logo, exceção à regra.
O direito fundamental de acesso à jurisdição é garantia dada a todo cidadão de que nenhuma lesão ou ameaça a direito será excluída da apreciação do Poder Judiciário (artigo 5º, XXXV da CRFB), conformado em uma evolução construída ao longo de um contexto histórico, como bem define Mauro Cappelletti [2].
As despesas processuais, custas e honorários de advogado, no contexto brasileiro de desigualdade econômica e social, e, sem a previsão da concessão da gratuidade da justiça, configurariam, em muitos casos, verdadeiro impedimento ao acesso ao Poder Judiciário; a gratuidade da justiça é, assim, um instrumento que materializa a isonomia no acesso à jurisdição e previne a ocorrência de um sistema de “justiça censitária”, seja em relação aos absolutamente hipossuficientes ou aos que, em um caso concreto, verifique-se que o custeio do aviamento da demanda judicial se torne um ônus desbalanceado à sua realidade econômica
Nesse particular, resta bastante evidenciado que o benefício da gratuidade da justiça não é um fim em si mesmo, senão, como já mencionado, um instrumento para a materialização da isonomia para a garantia de acesso ao Judiciário.
Sob tal perspectiva, importa reconhecer que não existe no ordenamento constitucional ou infraconstitucional direito à isenção de pagamento de custas e despesas processuais; persiste, contudo, direito ao acesso à justiça não dificultado por barreiras financeiras intransponíveis ou desproporcionais.
Concessão modulada
Sabe-se que há no artigo 98, §§ 5º 6 º do Código de Processo Civil a previsão da concessão da gratuidade da justiça de forma modulada, quanto a atos específicos ou todos os atos, bem como mediante a autorização de descontos percentuais sobre os valores que devam ser antecipados no curso da tramitação, além da possibilidade de parcelamento dos valores, de modo a adequar o recolhimento devido à situação econômica do postulante, conforme o entendimento do Superior Tribunal de Justiça, na ProAfR no REsp 1.988.686/RJ
Essa avaliação somente pode ser realizada no caso concreto, mediante análise acurada dos elementos constantes nos autos; o fato de a lei haver estabelecido a presunção de veracidade quanto à alegação de insuficiência de recursos afirmada por pessoa natural não deve ser interpretado como impedimento ao juiz-presidente quanto ao exercício de seus deveres processuais, inclusive, para assegurar às partes igualdade de tratamento e prevenir ou reprimir qualquer ato contrário à dignidade da justiça (artigo 139, I e II do CPC).Essas conclusões devem ser construídas por meio da aplicação dos métodos de hermenêutica jurídica. A interpretação literal do §3º do artigo 99 do CPC, no que afirma uma presunção, evidencia que esta cede em face de prova em contrário, sendo, portanto, relativa.
A interpretação histórica, por sua vez, revela que as regras de gratuidade da justiça, no modelo atual, sucederam aquelas previstas na Lei nº 1060/1950, devendo, portanto, ser interpretadas pela ampliação significativa da margem de decisão quanto à concessão do benefício, inclusive, de forma modulada. Essa análise do caso concreto e decisão ajustada somente pode ser alcançada mediante a existência nos autos de elementos e provas nos quais a decisão deva se fundar, sem que isso, por si só, implique a negação da presunção legal relativa, sumariamente.
Nesse sentido, é o entendimento sedimentado no STJ, o qual reconhece tanto a possibilidade de parcelamentos adequados ao caso concreto como o deferimento parcial do benefício (o desconto), como se nota nos fundamentos do AgInt no AREsp 1.450.370/SP
O objetivo do benefício e as regras para sua concessão, interpretados teleologicamente, apontam para uma compatibilização entre o recolhimento de despesas devidas e o acesso ao Judiciário; essa conclusão pode ser perfeitamente extraída exatamente da autorização para modulação do benefício, bem como da possibilidade de indeferimento, quando o juiz reconhecer a presença de elementos que evidenciem a falta dos pressupostos legais para a concessão (§2º do artigo 99 do CPC).
Oportunidade de comprovação
No que concerne à interpretação sistemática, consideradas as razões apresentadas acima, temos que a própria topografia dos dispositivos a serem interpretados de modo coerente leva à conclusão de que a presunção legal relativa prevista no já mencionado §3º do artigo 99 do CPC não impede o juiz, quando reconhecer a presença de elementos em contrário, adotar a providência do §2º do mesmo artigo, para oportunizar ao pretenso beneficiário comprovar objetivamente a necessidade do benefício e sua extensão.
Com essas considerações, em cada caso concreto, deve-se atentar aos elementos apresentados nos autos, tais como a profissão do litigante, a renda declarada, o valor do bem ou direito discutido entre outros, para, reconhecidas informações que indiquem a possibilidade do recolhimento de custas, ainda que reduzidas e parceladas, dar ao postulante a oportunidade de demonstrar encontrar-se em circunstância excepcional que não lhe permite assimilar nenhuma fração do montante devido
Conclusão
A presunção legal relativa de insuficiência de recursos, portanto, somente incide quando não há elementos e informações em sentido contrário, pelo que se mostra equivocada a interpretação de que a existente presunção impede o julgador de buscar exatamente tais elementos e informações para decidir com base em provas, reservado o julgamento com base na presunção quando evidências não forem obtidas.
Outrossim, há, de fato, circunstâncias processuais nas quais a presunção de insuficiência de recursos financeiros se apresenta de modo a não externar elementos que indiquem a ausência dos pressupostos para a concessão do benefício, sendo exemplos demandas propostas por crianças e adolescentes, desempregados, moradores de rua, consumidores superendividados, entre outros, visto que nesses casos se reconhece, como regra, a inexistência de renda ou o comprometimento excepcional das finanças pessoais, operando-se, pois, a presunção legal relativa, sendo desnecessária a perquirição judicial antes da análise do benefício.