Entrevista publicada em O Globo
O jornal maranhense “A imprensa” anunciava aos leitores, em 1º de agosto de 1860, que, por dois mil réis, era possível comprar um exemplar, “nitidamente impresso e em elegante formato” do romance “Úrsula”, de Maria Firmina dos Reis, professora da cidade de Guimarães. O editor cravava que, para uma iniciante, ela ia “mui bem”.
A estreia de Firmina não foi apenas pessoal — foi de todas as mulheres do Brasil. Ela ostenta o título de primeira a publicar um romance no país. Mais que isso, um romance abolicionista. Como negra, filha de alforriada e neta de escravizada, fora da Corte, Firmina sofreu o apagamento de gênero e raça tão recorrente na historiografia escrita por homens brancos. Nos últimos anos, no entanto, vem sendo colocada no panteão que merece, com reedições de “Úrsula” atualizadas e livros sobre seu legado.
Agora, Firmina foi a autora homenageada da 20ª edição da Festa Literária de Paraty, encerrada domingo (26), sendo tema central de mesas e atividades que discutiram seu romance, contos, poemas e a mais recente e completa biografia, “Maria Firmina dos Reis e o cotidiano da escravidão no Brasil”.
Na obra, lançada na Casa de Cultura na sexta-feira, o autor, juiz maranhense Agenor Gomes, monta a árvore genealógica da escritora, divulga documentos inéditos e detalha a importância dela como professora e compositora popular, como explica nesta entrevista ao GLOBO.
O GLOBO: Por que escrever a biografia de Maria Firmina dos Reis?
Agenor Gomes: Em 2017, a Feira Literária de São Luís a escolheu como patrona, e participei de um painel como representante do Instituto Histórico e Geográfico de Guimarães. Encontrei estudantes e pesquisadores que queriam saber sobre a vida dela, e eu tinha poucos dados. O que havia, até então, era a obra do primeiro biógrafo, José Nascimento Morais Filho (“Maria Firmina dos Reis: fragmentos de uma vida”, de 1976), que tinha mais de 40 anos. Vendo esse interesse, mergulhei na pesquisa.
O Globo – O que o Brasil perdeu com o apagamento da figura de Maria Firmina?
Agenor Gomes – Posso me fixar na questão da representatividade. Quantas estudantes, se conhecessem o protagonismo negro dela, poderiam considerá-la uma mulher que as representava? Morais Filho registra que as adolescentes de Guimarães faziam questão de dizer, quando disputavam algo: “Tu queres ser só uma Maria Firmina?”. Isso porque ela praticamente não saiu da província do Maranhão.
O Globo – Quando Maria Firmina começou, de fato, a despertar interesse nacional?
Agenor Gomes – Em 1986, a professora Luiza Lobo fez um artigo sobre ela para uma universidade italiana, que depois saiu numa universidade do Rio. Em 1988, nos cem anos da abolição, Luiza publicou uma edição atualizada de “Úrsula” e convidou o professor americano Charles Martin para escrever o prefácio. Ele fez um estudo bastante apurado, dizendo que, pela primeira vez, num romance brasileiro, o escravizado tinha um discurso de sujeito e não de objeto. Essa leitura foi muito importante. Hoje temos mais de 60 estudos acadêmicos sobre Maria Firmina.
O Globo – Foi preciso, então, uma publicação numa revista italiana e um prefácio de um americano para que despertar o interesse dos brasileiros por ela…
Agenor – Aqui está o apagamento, a demonstração do racismo estrutural. Firmina era uma mulher neta de uma escravizada. Na sociedade escravocrata do Império e depois na sociedade republicana, a mulher era um ser intelectualmente inferior. E o negro, um ser subalternizado.
O Globo – Em “Úrsula”, Firmina inaugura o romance abolicionista no Brasil. Qual foi a estratégia dela para abordar esse tema?
Agenor – Ela escrevia para a sociedade escravocrata. Então, a estratégia dela foi: “Vou fazer um livro de uma história ultrarrômantica, de um casal apaixonado, mas vou abordar o tema da violência da escravidão”. No capítulo nove, “A preta Susana”, ela descreve, com um realismo enorme, o que acontecia na travessia da África para o Brasil. Ela faz isso dez anos antes de “O navio negreiro”, de Castro Alves. Esse tema também aparece depois, por exemplo, em “A escrava”, de 1877, ainda antes da abolição (1888), um conto rigorosamente abolicionista, em que ela fala das redes de solidariedade, das fugas. São obras muito importantes.
O Globo – Como foi a recepção de “Úrsula” no Maranhão? E no resto do Brasil, como na Corte?
Agenor – Na Corte, não temos nenhum registro. Agora, em São Luís, “Úrsula” foi muito anunciado nos jornais. Isso prova que ela era uma mulher de estratégia, articulada.
O Globo – Maria Firmina nasceu em 1825, num momento do país em que a grande maioria das mulheres não tinha acesso à educação, mas ela lia Shakespeare, Byron, Camões. Como foi a formação dela?
Agenor – O que há de concreto é que ela só fez a escola primária. Nós deduzimos que, como uma tia morava na rua do Alecrim, é provável que Maria Firmina tenha frequentado uma escola de primeiras letras para o sexo feminino, que funcionava ali perto. E ela estudou com recursos próprios para fazer o concurso de professora.
O Globo – Qual a importância dela na área da educação?
Agenor – Firmina fundou a primeira escola mista do estado e uma das primeiras do Brasil (nos anos de 1880), um barracão simples, em Maçaricó, a uns 10km de Guimarães. Conseguiu se impor, nessa sociedade escravocrata, com a força pessoal. Lecionava para filhos de donos de fazendas e também para crianças pobres negras.
O Globo – A professora Luiza Lobo, no prefácio do seu livro, diz que “Maria Firmina deve ser celebrada, ao lado da Chiquinha Gonzaga, também como compositora afrodescendente” que é. Como é essa faceta ?
Agenor – A presença dela como ativista da cultura popular em Guimarães é muito forte. Quando Morais Filho chega à cidade para fazer a primeira biografia, todos lembravam dela como professora, cronista, compositora musical, mas não como romancista. A música está na memória oral das pessoas. Firmina fazia músicas para enamorados, autos natalinos, de bumba meu boi.
O Globo – O que ainda falta para ela ser reconhecida à altura da mulher que foi?
Agenor – No momento em que a Flip escolhe homenageá-la, vemos um passo importante para a divulgação de Maria Firmina dos Reis. Mas vamos ficar satisfeitos mesmo será quando ela, efetivamente, chegar aos livros escolares, como a protagonista que foi.