Fonte: Conjur 

Multa por descumprimento de decisão judicial não é punição. Seu valor pode ser revisado a qualquer tempo, sempre com base na efetividade da tutela, mas também na proporcionalidade e razoabilidade. O processo é instrumento de efetivação de garantias e não pode ser usado para enriquecimento indevido.

Operadora de plano de saúde descumpriu ordem de reembolso de R$ 20 mil até a dívida chegar a mais de R$ 700 mil
Reprodução

Com esse entendimento e por maioria de votos, a Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça deu provimento a embargos de divergência para rever o montante de execução em astreintes — multa diária pelo descumprimento de ordem judicial de fazer — que chegava a quase 40 vezes o valor da obrigação principal descumprida.

Prevaleceu o voto do relator, ministro Raul Araújo, seguido no mérito pelos ministros Luís Felipe Salomão, João Otávio de Noronha, Jorge Mussi, Maria Thereza de Assis Moura e Mauro Campbell.

Ficaram vencidos por entender que o valor acumulado pela multa não deve ser reduzido os ministros Herman Benjamin e Laurita Vaz. Não participaram do julgamento os ministros Og Fernandes, Francisco Falcão, Nancy Andrighi e Paulo de Tarso Sanseverino. Não votou, impedido, o ministro Benedito Gonçalves.

De R$ 20 mil para R$ 750 mil
Na origem, a ação ajuizada foi pelo ressarcimento de valor gasto com tratamento de saúde, que culminou com obrigação a ser paga pela operadora de plano de saúde de cerca de R$ 20 mil e imposição de multa diária cujo valor, já posteriormente revisado, ficou em R$ 500.

O processo é instrumento de efetivação de garantias e não pode ser usado para enriquecimento indevido, disse Raul Araújo
Lucas Pricken

Com o trânsito em julgado, a operadora pagou menos do que deveria, e não quitou a dívida por tempo suficiente para que os autores da ação pudessem ajuizar cumprimento de sentença em valor muitas vezes acima da condenação original. Em 2013, o valor já depositado pela empresa correspondia a R$ 750 mil, dos quais R$ 730 mil representavam astreintes.

Em 2014, nove anos depois do ajuizamento da ação, a seguradora pediu a redução do valor das astreintes. Nas instâncias ordinárias, o montante caiu para R$ 100 mil, decisão que foi derrubada no STJ pela 4ª Turma, em recurso relatado pelo ministro Marco Buzzi.

Na ocasião, entendeu-se que não é possível rever indefinidamente o montante da sanção, sob o pretexto de que o valor da multa diária não faz coisa julgada material, ainda mais quando já existiu explícita e específica manifestação a respeito — inclusive pelo STJ.

Naquele julgamento, ficou vencido o ministro Luís Felipe Salomão e não participou o ministro Raul Araújo, que era Corregedor da Justiça Federal e estava sendo substituído pelo desembargador convocado Lázaro Guimarães. Foi o voto de ambos que, na Corte Especial, levou a reverter o entendimento.

Caso nem deveria ter astreinte porque não incide em obrigação de pagar, disse Salomão
Gustavo Lima/STJ

Credor conformado
Relator dos embargos de divergência, o ministro Raul Araújo destacou que não existe preclusão ou formação de coisa julgada que impossibilite a revisão das astreintes se o valor feriu os princípios da razoabilidade, proporcionalidade e vedação do enriquecimento sem causa.

O objetivo é impedir que, longe de cumprir seu papel coercitivo, a multa sirva de ilegítimo meio para desvirtuar o que é buscado pelo autor numa ação judicial. Em muitos casos, alertou, o descumprimento da ordem judicial é desejado e consentido pela “sagacidade silenciosa do credor” e pela “negligência inconsciente do devedor”. “Infelizmente, acontece em muitos casos. Não estou dizendo que aconteceu nesse”, afirmou.

No caso concreto, apontou que valor acumulado desbordou consideravelmente, servindo ao credor como inadequado locupletamento. Ao acompanhar, o ministro Salomão destacou que sequer seria o caso de se exigir multa, pois a obrigação imposta na decisão judicial foi de reembolso, e as astreintes só incidem em obrigação de fazer.

“A Corte Especial não pode avalizar esses absurdos que ocorrem com as astreintes. Tem litigante que prefere não receber obrigação e contar com a multa”, concordou o ministro João Otávio de Noronha, ao votar para formar a maioria.

Recalcitrância gerou “empobrecimento ilícito”, disse Herman Benjamin
Gustavo Lima/STJ

A culpa é de quem?
Abriu a divergência e ficou vencido, ao lado da ministra Laurita Vaz, o ministro Herman Benjamin, segundo o qual a culpa de o valor chegar a tal magnitude é exclusivamente da ré, empresa de grande porte que poderia facilmente ter depositado os R$ 20 mil de forma imediata. “Absurdo, se há, não é do valor, mas sim dele ser desconsiderado dia a dia”, disse.

Ressaltou também as condições dos credores, que buscavam o reembolso pelo tratamento médico: família de renda modesta, beneficiária da Justiça gratuita — a pessoa que usou o plano de saúde tem necessidades especiais.

“Está em questão uma pessoa portadora de deficiência, mas também a proteção da saúde e a própria credibilidade e autoridade da decisão judicial perante as grandes organizações empresariais do país”, destacou. “Ninguém pode alegar sua própria torpeza e, neste caso, a vontade de não reembolsar. E agora vamos reduzir? Por que não pagou em três dias? Em um mês? Não há enriquecimento ilícito, mas sim empobrecimento ilícito”, acrescentou.

Tema recorrente
O julgamento do recurso na Corte Especial teve divergência preliminar sobre o conhecimento dos embargos de divergência, que exigem similitude fática entre o acórdão atacado e os que são apontados como paradigma. No geral, as astreintes são matéria constante e polêmica no STJ, como ressaltou o ministro Salomão, ao votar.

Julgamento gerou divergência entre os integrantes da Corte Especial do STJ

“A questão das astreintes traz um debate que um dia teremos que travar: se é realmente adequado sua destinação ao particular, ou se devem ser carreadas para os cofres públicos. O Judiciário é afrontado quando se descumpre ou se atrasa o cumprimento de decisão judicial”, afirmou.

Em 2020, por exemplo, a 3ª Turma manteve a condenação de R$ 3,1 milhões pelo descumprimento do pagamento de indenização no valor de R$ 20 mil, apontando para a “desobediência flagrante” da instituição financeira condenada. Por outro lado, o colegiado já reduziu de R$ 1 mil para R$ 100 a punição em outro caso, pelo descumprimento de ordem judicial relativa a uma obrigação de R$ 123,92.

Na 3ª Seção, que julga matéria penal, a discussão ganhou relevância diante da recalcitrância de empresas de tecnologia em cumprir decisões em investigações criminais. Foi assim que passou a admitir bloqueio judicial do valor da multa e definiu que ela começa a correr com a resistência ao cumprimento da ordem, mesmo que ainda haja prazo para sua ocorrência.