STJ

A confirmação de que uma pessoa adulta não tem mais a capacidade de gerenciar os atos de sua vida civil é um momento familiar doloroso, que também envolve muitas complicações jurídicas. O tema é de avaliação obrigatória pelo Judiciário, responsável por decidir sobre a interdição ou não de uma pessoa. Em razão de sua complexidade, muitos processos sobre o assunto acabam chegando ao Superior Tribunal de Justiça (STJ).

A análise judicial – que ganhou novos contornos após a publicação do Estatuto da Pessoa com Deficiência, em 2015 – tem dois momentos principais: a interdição, em que se avalia a real incapacidade para a gestão da vida civil, e a curatela, instrumento pelo qual uma pessoa (ou mais de uma) se torna responsável por acompanhar o interditado e gerir suas rendas e seu patrimônio.

Na primeira parte desta reportagem especial, são apresentados entendimentos do STJ sobre o processo de interdição; no próximo domingo (24), as decisões do tribunal em diversas controvérsias a respeito do instituto da curatela.

O papel do MP como defensor do curatelando

Uma questão que ainda gera posições divergentes no tribunal diz respeito à atuação do Ministério Público (MP) em defesa dos interesses do curatelando.

Em dezembro de 2019, a Terceira Turma, por maioria, julgando processo que tramitou em segredo, decidiu que a atuação do MP como fiscal da ordem jurídica, em ação de interdição da qual não é autor, impede que ele atue, simultaneamente, como defensor do curatelando.

No processo, uma mulher pediu a interdição de sua irmã. Não havia Defensoria Pública na comarca, e as instâncias ordinárias indeferiram o pedido do MP para que fosse nomeado curador especial, ao fundamento de que tal papel poderia ser desempenhado pelo próprio órgão ministerial, uma vez que a Constituição Federal permite que ele exerça outras funções que não sejam incompatíveis com a sua finalidade.

A relatora no STJ, ministra Nancy Andrighi, apontou a existência de uma antinomia entre a função de fiscal da lei e os interesses particulares envolvidos. Segundo ela, a cumulação de funções pelo MP pode levar à prevalência de uma em detrimento da outra, o que seria contrário aos valores que o legislador visava resguardar ao estabelecer regras especiais para o processo de interdição.

No caso de não haver Defensoria Pública estadual em determinada comarca para exercer a curadoria especial, a ministra afirmou que essa ausência deve ser suprida conforme as normas locais de organização e funcionamento do órgão e, “na impossibilidade de tal suprimento, há de ser designado advogado dativo“.

No mesmo mês, dezembro de 2019, a Quarta Turma, invocando precedentes, reafirmou que, “nos procedimentos de interdição não ajuizados pelo Ministério Público, cabe ao órgão ministerial defender os interesses do interditando”. Para o colegiado, “a designação de curador especial pressupõe a presença de conflito de interesses entre o incapaz e o representante legal” – situação não verificada no caso em julgamento, que também tramitou em segredo judicial.

O recurso do MP era contra acórdão do Tribunal de Justiça da Bahia (TJBA), o qual considerou indispensável a intimação do órgão para representar o interditando e desnecessária a nomeação de curador especial para exercer a mesma função. De acordo com o MP, sua atuação como representante judicial do suposto incapaz seria inviável desde a promulgação da Constituição de 1988, e o exercício da curadoria especial caberia à Defensoria Pública.

Por considerar que o acórdão do TJBA estava em consonância com entendimentos do STJ, a Quarta Turma confirmou a decisão monocrática do relator, ministro Marco Buzzi, que havia mantido a inadmissão do recurso especial do MP.

Sentença de interdição não afeta atos anteriores do interditado

Ao julgar o AgInt nos EDcl no REsp 1.834.877, de relatoria do ministro Raul Araújo, a Quarta Turma reafirmou o entendimento de que a sentença de interdição possui natureza constitutiva, pois, além de declarar uma incapacidade preexistente, ela constitui uma nova situação jurídica, de sujeição do interditado à curatela, com efeitos ex nunc.

No caso julgado, um idoso firmou contrato de cessão de crédito em favor de três pessoas. Após a morte do cedente, o espólio afirmou que ele não tinha capacidade mental suficiente para celebrar o negócio, devido à idade avançada e a graves problemas de saúde – o que, inclusive, ensejou sua interdição.

espólio alegou ainda que houve dolo por parte dos cessionários, que teriam se aproveitado da situação do idoso para comprar, por apenas R$ 200 mil, um precatório avaliado em quase R$ 1 milhão. O TJSP negou provimento ao recurso do espólio.

No STJ, o ministro Raul Araújo apontou que, conforme consta nos autos, o cedente não aparentava distúrbio mental e estava lúcido à época da negociação, não havendo demonstração inequívoca de que já fosse incapaz naquele momento.

Para o relator, o entendimento do TJSP, de que a superveniência de incapacidade não afeta a validade dos contratos firmados anteriormente, estava em consonância com a jurisprudência do STJ, a qual prevê que a sentença de interdição, salvo pronunciamento judicial expresso em sentido contrário, tem efeitos ex nunc.

Nulidade de ação que envolve incapaz por falta de intimação do MP não é automática

“A ausência da intimação do Ministério Público, quando necessária sua intervenção, por si só, não enseja a decretação de nulidade do julgado, sendo necessária a demonstração do efetivo prejuízo para as partes ou para a apuração da verdade substancial da controvérsia jurídica”, declarou o ministro Luis Felipe Salomão no julgamento do REsp 1.694.984.

Uma empresa ajuizou ação de rescisão contratual e reintegração de posse contra uma mulher e obteve vitória parcial em primeira instância. Na apelação, o curador da ré afirmou que ela foi interditada durante o curso do processo, por ter sido considerada absolutamente incapaz para os atos da vida civil, e requereu a declaração de nulidade da citação feita em seu nome.

O MP estadual também pediu a anulação do processo, por vício na citação e ainda porque não houve a intimação do órgão para atuar no feito, o qual envolvia interesse de pessoa que foi declarada incapaz na ação paralela de interdição.

Ao analisar o caso, a Quarta Turma reafirmou o entendimento de que os atos do interditado anteriores à interdição até podem ser reconhecidos como nulos, mas esse não é um efeito automático da sentença de interdição, devendo ser proposta ação específica de anulação do ato jurídico, na qual precisará ser demonstrado que já havia incapacidade na época de sua realização.

Quanto à falta de intimação do MP, o ministro Salomão, relator, afirmou que a intervenção do órgão nos processos que envolvem interesse de incapaz “se justifica na possibilidade de desequilíbrio da relação jurídica e no eventual comprometimento do contraditório em função da existência da parte vulnerável”.

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