Melhora na coleta de provas, decisões mais bem fundamentadas, além de prestação jurisdicional especializada em assuntos técnicos e atentas ao cumprimento dos direitos. Essas são algumas das vantagens das varas exclusivas da Justiça brasileira, criadas para processar e julgar temas como crimes contra crianças e adolescentes, violência contra mulher, litígios contra entidades públicas e execução penal.
As varas exclusivas ainda estão em menor número em relação às demais unidades judiciárias, mas os magistrados concordam que nesses juizados especializados as equipes de servidores, colaboradores e magistrados acabam por conhecer de maneira aprofundada e técnica os casos que chegam para o Poder Judiciário se manifestar.
Entre os assuntos tratados nessas unidades, um vem ganhando destaque nos últimos anos, os crimes cometidos contra crianças e adolescentes. Em 2021, foram mais de 120 mil denúncias de maus-tratos contra crianças e adolescentes registradas pelo Disque 100. O caso de maior repercussão foi o do menino Henry Borel, de 4 anos, morto em decorrência de uma hemorragia interna e múltiplas lesões causadas por agressões, das quais o padrasto da criança é acusado pelo Ministério Público do Rio de Janeiro.
Além de chocar o Brasil, o caso acelerou a criação da 1ª Vara Especializada em Crimes Contra Crianças e Adolescentes (VECA) do Rio de Janeiro, estado que mais registrou denúncias de violência contra crianças no país, em 2021. “Era uma demanda que vinha de longo tempo, mas o caso Henry ajudou. Percebemos que casos como esses são melhor detectados e melhor trabalhados junto ao Poder Público quando tratados de maneira especializada”, diz a juíza titular da vara, Gisele Guida.
Segundo dados do Relatório Justiça em Números, há 160 unidades exclusivas de Infância e Juventude na estrutura do primeiro grau da Justiça Estadual. Nessas unidades, são tratadas questões como adoção, atos infracionais, direitos violados, omissão da família, entre outros. Para cada caso, magistrados e equipes especializadas buscam entender como a Justiça pode ajudar a reverter a situação.
Leia a íntegra do Relatório Justiça em Números 2022
Julgamento técnico e humano
“São casos que, em geral, levam um pouco mais de tempo para serem concluídos pois cada situação é analisada de maneira especial. Antes da decisão é preciso uma oitiva especial, uma escuta especificamente trabalhada para identificar os problemas que estão por trás daquela situação. E para costurar os meios adequados para solucionar a vida desses jovens, muitas vezes o juiz ou sua equipe precisam entrar em contato com a rede de proteção para que sejam acionadas e deem suporte à decisão”, diz vice-presidente do Fórum Nacional de Justiça Protetiva (Fonajup), juiz titular da Vara da Família, Infância e Juventude e Idoso do município de Valença/RJ, Daniel Konder de Almeida.
Na 2ª Vara de Crimes contra a Dignidade Sexual de Crianças e Adolescentes de Manaus (TJAM) tramitam, atualmente 905 processos. A unidade foi criada em 2018 para ajudar no julgamento dos casos que chegavam na 1ª vara da capital. Diretora da unidade, a servidora Raquel Viana de Freitas diz que a tramitação dos casos busca respeitar uma peculiaridade do tratamento judicial em relação aos crimes cometidos contra crianças: a urgência do tempo.
“A oitiva deve ser tomada o mais brevemente possível para evitar que detalhes do crime sejam esquecidos e, dessa forma, o caso não seja julgado de maneira eficiente”, explica.
Ela ressalta que a tomada de depoimento feita na unidade é realizada por psicólogos e assistentes sociais em um ambiente preparado para não assustar a criança. “Já teve casos de advogados fazerem perguntas impertinentes e o psicólogo que conduzia a entrevista barrar essa intervenção”, conta Raquel.
Infelizmente, fora de Manaus, casos como esses ainda acabam sendo julgados em comarcas de juízo único (que julgam todo tipo de caso), devido ao grande número de pequenos municípios espalhados pelo imenso território do Amazonas, que não justificam a criação de comarcas especializadas.
Exclusivas e abrangentes
“A vara exclusiva é uma espécie de especialização. Ela é necessária principalmente quando se trata de temas técnicos. O conhecimento aprofundado permite que o juiz aprecie com mais facilidade a matéria, melhore o embasamento e a tecnicidade de seu julgamento e, consequentemente, o desenvolvimento da judicatura”, afirma o juiz Celso Orlando Pinheiro Júnior, titular da 1ª Vara de Fazenda Pública de São Luis (MA). Segundo o Justiça em Números, funcionam no país 536 varas exclusivas relativas à Fazenda Pública, e 92% dos casos que chegam à Justiça Estadual são analisados em uma dessas unidades.
As varas de Fazenda Pública julgam a maior parte dos processos judiciais que chegam à Justiça, chegando a analisar – em determinados estados (no Maranhão, inclusive) –, 100% dos julgamentos de causas cíveis em que figurem como parte o Estado, municípios, autarquias, empresas públicas, sociedades de economia mista e fundações de direito público.
A média de taxa de congestionamento – que mede o percentual de casos que permaneceram pendentes de solução em relação ao que tramitou – nessas unidades é de 89%. No ano passado, a 1ª Vara de Fazenda Pública de São Luis recebeu 576 processos novos, e finalizou 1.607 casos, mas o número de processos pendentes seguiu alto: 10.975. Celso Orlando Pinheiro Júnior, titular da vara, explica que o índice é alto por diversos fatores, entre eles os prazos especiais (duplicados) dos processos que envolvem o Poder Público e a obrigatoriedade da apresentação de recursos, o que eleva o tempo de tramitação.
Direitos humanos
“Precisamos estar preparados – seja por treinamento, cursos, ou experiência em atendimento a vulneráveis – a lidar com especificidades. O povo yanomami, por exemplo, troca de nome em determinados momentos da vida. Para nós, isso poderia gerar conflitos no registro civil. Como estamos adaptados a esse ritual, ou seja, entendemos o contexto, respeitamos a cultura deles e resolvemos essa questão registral sem maiores problemas”, exemplifica o desembargador Erick Cavalcanti Linhares, do Tribunal de Justiça de Roraima (TJRR), que, como juiz, lidou com os indígenas por mais de 20 anos, em uma comarca que acumula essa e outras competências.
Para ele, é preciso especialização de servidores e magistrados para lidar com certos temas (como é o caso dos povos indígenas), para que as determinações judiciais não desrespeitem as culturas dos povos originários.
Outro tema que vem demandando especialização diz respeito à violência doméstica. Diferentemente das varas de Fazenda Pública, as unidades que julgam casos de violência contra a mulher recebem um número bem menor de processos em comparação ao total do que chega na Justiça. No ano passado, tramitaram mais de 1 milhão de processos desse tipo na Justiça, sendo 6 mil referentes a casos de feminicídio.
O número de varas especializadas para lidar com esses casos era, em 2021, de 138 unidades em todo o Brasil. Dados do Justiça em Números apontam que 32% dos processos relativos a casos de violência doméstica tramitaram nas varas exclusivas naquele período. Elas apresentaram menores taxas médias de congestionamento (65%). As unidades não exclusivas apresentaram uma taxa de congestionamento de certa forma próximo a esse número – 68%.
Vale ressaltar que dentro da Política Nacional de Enfrentamento à Violência Contra a Mulher no Judiciário implementada pelo CNJ, os tribunais foram orientados (Recomendação 82/2020) a capacitar os magistrados em direitos humanos a partir de uma perspectiva de gênero, assim como incluir a capacitação na Lei 11.340/2006 (Lei Maria da Penha) para todos os juízes e juízas que detenham competência para aplicar a referida lei, assim como aqueles que atuem em plantões judiciais e audiências de custódia.
Texto: Regina Bandeira
Edição: Thaís Cieglinski
Agência CNJ de Notícias