Demandas Predatórias e Morosidade do Poder Judiciário.

Holídice Cantanhede Barros

O Conselho Seccional da OAB no Maranhão acaba de lançar uma campanha intitulada “SOS Morosidade”, capitaneada por sua “Comissão de Celeridade Processual”, para apurar denúncias de atrasos na condução de processos e prolações de decisões, por meio de um canal de denúncias, inclusive com a promessa de ingresso de “procedimentos representativos” junto ao CNJ.

Além de ignorar a existência da Corregedoria Geral de Justiça e da Ouvidoria do TJMA, que devem cumprir este papel fiscalizatório, a novel campanha deixa de reconhecer e combater uma das maiores causas da morosidade do Poder Judiciário, que são as chamadas demandas predatórias, além de evidenciar a ausência de uma percepção da corresponsabilidade da OAB e das outras instituições do Sistema de Justiça pelo excesso de litigância no Brasil.

Demandas predatórias referem-se a desvios ou abusos do direito de acesso ao Poder Judiciário, com o ingresso em massa de ações sem a esperada diligência ou desprovidas de elementos documentais mínimos, inclusive com situações de fraudes, ausência de uma análise mais cuidadosa dos fatos, demandas frívolas ou desnecessárias, entre outros aspectos. Tais circunstâncias estão a indicar a ausência de uma litigiosidade real e que causam um mal terrível ao Poder Judiciário, prejudicando as pessoas que efetivamente necessitam da jurisdição, além de consumir recursos preciosos do seu orçamento e que afetam a sua sustentabilidade.

Em um levantamento feito pelo Núcleo de Monitoramento de Perfis de Demandas (Numopede) do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP), restou demonstrado que a litigância predatória é responsável por uma média de 337 mil novos processos por ano só em São Paulo, e por um prejuízo anual de cerca de R$ 2,7 bilhões aos cofres públicos.

O painel de estatísticas do DAJUD-CNJ informa, ainda, o ingresso no TJMA de 67.545 novos casos com a indicação de assunto “empréstimo consignado” entre 01.01.2023 a 30.07.2023, situando o tribunal na primeira posição entre os tribunais brasileiros. O TJPI, segundo colocado no ranking, distribuiu no mesmo período, 38.760 novas demandas com o mesmo assunto, evidenciando a absoluta desproporcionalidade do acervo maranhense.

A Ordem parece fazer de conta que estas demandas não existem ou, pior ainda, simplesmente legitima as suas ações, quando não trabalha para separar o joio do trigo, o bom do mau advogado, que insiste em despejar milhões de ações desnecessárias no Poder Judiciário, prejudicando aqueles que efetivamente precisam de uma prestação célere e efetiva.

O Excesso de litigiosidade é um fenômeno altamente complexo, mas, sem dúvida, a falta de uma postura colaborativa de parte da advocacia, voltada aos meios alternativos de resolução de litígios, contribui para elevar as ações judiciais a um patamar jamais visto. Adicione-se a estes ingredientes os pedidos e concessões indiscriminadas de assistência judiciária gratuita, alinhado ao baixo risco das demandas. Eis aí um fator decisivo para a explosão de litigiosidade no país.

Estimativas indicam que desde a promulgação da Constituição de 1988, o número de processos nas instâncias ordinárias aumentou cerca de 270 vezes, saltando de 350 mil para mais de 96 milhões de processos em 2012. Em 2014 ultrapassou a marca dos 100 milhões de feitos em andamento, posicionando-se como recordista mundial em processos judiciais, muito à frente da segunda colocada, a Índia, com cerca de 30 milhões de ações. No ano passado, 21,3 milhões de ações ajuizadas pela primeira vez em 2022, 7,5% a mais que o ano anterior. Mais de 29 milhões de processos foram julgados, aumento de 2,9 milhões de casos (10,9%) em relação a 2021, e o terceiro maior volume em 14 anos. Foram finalizados (baixados) 30,3 milhões de processos, crescimento de 10,8% em relação a 2021.

No Maranhão, há alta litigiosidade em todos os níveis. Nas comarcas de entrância inicial, são inúmeras as unidades que recebem de 300 a 400 processos por mês, o que representa, pelo menos, 10 novas ações por dia. Cada processo passará por uma série de atos processuais até o desenlace com a sentença de primeiro grau. No segundo grau, os gabinetes das câmaras cíveis têm registrado recebimento de 900 novas ações por mês.

Apesar desses números, o que se verifica é a resistência da OAB à utilização das plataformas de resolução de litígios, as ODRs (Online Dispute Resolution), que permitem às partes resolver seus problemas antes do ingresso das ações judiciais. Foi atendendo a um pedido da OAB-MA que o TJMA revogou a resolução nº 43/2017 do TJMA, que tratava da utilização de plataformas extrajudiciais, como exemplo a plataforma consumidor.gov, para tentativa de conciliação. Foi, ainda, a OAB que questionou norma do CNJ que tornava desnecessária a presença de advogados nos Centros Judiciários de Solução de Conflitos e Cidadania (CEJUSCs).

Em recente debate (REsp nº 2.021.665 – MS), o STJ discutiu a possibilidade de o Juiz fazer uso do seu poder geral de cautela e de gestão para coibir o uso abusivo do Poder Judiciário, no caso dos empréstimos consignados. Mas, lamentavelmente, no caso do Maranhão os magistrados e as magistradas que têm adotado esta postura para evitar demandas sem lastro mínimo, em uma evidente inversão de valores, sofrem com representações pela Seccional da OAB com o propósito de intimidá-los e obter uma decisão favorável às suas pretensões, ignorando os meios recursais disponíveis.

O Judiciário como serviço público tem trabalhado de forma árdua por melhores entregas para a sociedade. Nesse sentido, tem aumentado sua produtividade ano a ano e tem apostado na gestão e no planejamento estratégico. De acordo com relatórios preliminares do CNJ, o Tribunal de Justiça do Maranhão deverá evoluir do selo prata de qualidade para o selo ouro, no último ano, entre os tribunais de porte médio, demonstrando que o comprometimento da magistratura maranhense tem dado resultado.

Todavia, o nível de produtividade da Magistratura tem dificuldades de acompanhar o aumento contínuo da litigiosidade. O acesso indiscriminado ao Judiciário, inclusive com o manejo de todos os meios recursais e de impugnações cabíveis (e não cabíveis) levará ao seu esgotamento ou contribuirá para sua ineficiência. Como lembra-nos Ésquilo, no Mito de Tântalo, o Rei de Corinto, único mortal admitido a partilhar a mesa do Olimpo, ofereceu aos Deuses, como oferenda, a carne do próprio filho. Indignados com a blasfêmia, os deuses condenam Tântalo ao suplício da fome e sede eternas. Assim, mergulhado em água até o pescoço, quando Tântalo se debruçava para beber água, esta desaparecia. Para além disso, por cima da sua cabeça pendiam ramos de árvores com frutos saborosos, o vento retirava do seu alcance sempre que tentava colhê-los.

A fábula acima representa bem a incompatibilidade e entre hiperlitigiosidade e eficiência na entrega da prestação jurisdicional. Em outros termos, o Poder Judiciário, enquanto serviço público, possui recursos limitados, que devem ser bem gerenciados, a fim de que sejam atendidos o maior número de casos possíveis com o maior grau de qualidade viável.

A Magistratura está empenhada no processo de contínuo aperfeiçoamento, buscando excelência, razão pela qual é preciso conclamar juízes e juízas, servidores e servidoras, a empenhar-se na busca por mais produtividade. É preciso, para atender aos reclames sociais, não descuidar de uma atuação firme contra as condutas que representam a verdadeira causa da morosidade, como o uso predatório do Poder Judiciário, coibindo a sua prática por meio dos instrumentos legais cabíveis e por uma gestão processual adequada, estimulando que partes e advogados ajuízem de forma mais criteriosa as suas demandas.