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A apresentação de uma tese defensiva na tentativa de evitar responsabilização penal não é motivo para valorar negativamente a culpabilidade do réu, caso a mesma seja considerada inverídica pelo juiz.

Com esse entendimento, a 6ª Turma do Superior Tribunal de Justiça concedeu a ordem em Habeas Corpus para reduzir a pena imposta a um homem que, acusado de tráfico de drogas e posse ilegal de arma de fogo, tentou culpar o vizinho pela conduta.

O réu foi preso em flagrante com os entorpecentes e o armamento. Em juízo, afirmou que o vizinho teria plantado as drogas e armas em sua casa na noite anterior ao cumprimento do mandado de busca e apreensão pela polícia.

O juízo de primeiro grau considerou que tentativa maliciosa extrapolou os limites da garantia constitucional da ampla defesa, por propor uma incriminação injusta de um terceiro, o que poderia levar à movimentação indevida dos órgãos de persecução penal.

Assim, aumentou a pena-base por considerar maior grau de reprovabilidade da conduta. O Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul referendou a interpretação feita. Ao STJ, a defesa destacou que o réu apenas apresentou sua versão para defender-se dos fatos que lhe foram imputados.

Relator na 6ª Turma, o ministro Rogerio Schietti afastou o aumento de pena. A princípio porque o fato de o vizinho naturalmente ter recusado a versão do réu em juízo não comprova que ele realmente mentiu ou que atribuiu falsamente o crime a outra pessoa.

Ainda que a mentira estivesse comprovada, não haveria impacto na culpabilidade, pois a tese defensiva apresentada é fato posterior ao crime e não pode ser usada retroativamente para incrementar o juízo de reprovabilidade de fato praticado no passado.

“O que deve ser avaliado é se, ao praticar o fato criminoso imputado, a culpabilidade do réu foi exacerbada ou se, até aquele momento, ele demonstrava personalidade desvirtuada ou conduta social inadequada, o que não pode ser aferido retroativamente com base em fato diverso que só veio a ser realizado em tempo futuro, às vezes longos anos depois”, disse.

O réu cometeu o crime em maio de 2013, mas só foi interrogado em agosto de 2019, mais de seis anos mais tarde, quando tentou imputar a conduta ao vizinho. Logo, o aumento na pena-base deve ser descartado. A votação foi unânime.

Não é bem assim

Na análise do ministro Schietti, o fato de o vizinho recusar a versão apresentada pelo réu — o que é natural, uma vez que isso significaria admitir a prática de um crime — pode enfraquecer a defesa, mas não serve para responsabilizá-lo penalmente.As consequências de adotar essa posição seriam potencialmente graves.

O voto traz alguns exemplos. Um deles é que toda vez que qualquer réu alegasse haver sofrido algum tipo de abuso policial e a mesma fosse negada pelo agente, cuja palavra tem fé pública, haveria brecha para aumentar a pena ou mesmo imputar-lhe um crime autônomo.

“Restaria ao interrogado somente confessar, ficar em silêncio ou, no máximo, negar de forma vaga e genérica a imputação, a fim de não incorrer em possível delito, o que representaria grave fator de intimidação contra a exposição de possíveis ilegalidades praticadas por agentes estatais da persecução penal”, afirmou o relator.

Esse cenário seria o suficiente para frustrar as audiências de custódia. Alegar a ocorrência de qualquer tipo de abuso representaria um risco para o preso. Isso implicaria o aumento das já elevadas cifras ocultas da tortura praticada por agentes estatais, segundo o ministro.

O relator também afasta a existência de um paralelo com a confissão, no sentido de que, se ela serve para revelar um aspecto favorável apto a reduzir a pena do réu, então mentir em juízo revelaria o oposto e poderia autorizar o seu aumento.

Isso porque a confissão é uma ferramenta para valorizar e estimular a postura que o réu adota depois da prática do delito. O objetivo é premiar a quem facilita a atividade estatal de persecução penal.

“Diferente, porém, é a análise sobre o que pode legitimar o incremento da sanção penal, a qual, nos termos dos mais basilares postulados penais e processuais penais, não pode ficar ao sabor de eventos futuros, incertos e não decorrentes diretamente, como desdobramento meramente causal, do fato imputado na denúncia”, concluiu.

HC 834.126