Fonte: Conjur
Na hipótese de condenação concomitante a pena privativa de liberdade e multa, o inadimplemento da sanção pecuniária pelo condenado que comprovar impossibilidade de fazê-lo não obsta o reconhecimento da extinção da punibilidade.
Essa é a nova tese aprovada por unanimidade pela 3ª Seção do Superior Tribunal de Justiça. A partir de agora, quem provar que não pode pagar a pena de multa terá a punibilidade extinta após cumprir a pena privativa de liberdade.
Trata-se da segunda readequação feita ao tema 931 dos recursos repetitivos do STJ, em um tema que gera muito litígio pelas Defensorias Públicas do país e reflete de forma direta na política de ressocialização de presos no Brasil.
Inicialmente, o STJ definiu em 2015 que o réu que cumpre a pena privativa de liberdade tem a extinção da punibilidade decretada mesmo se ainda não pagou a pena de multa. A sanção pecuniária, como dívida de valor, então poderá ser cobrada pela Fazenda Nacional, mas sem efeitos no campo penal.
Em 2018, o Supremo Tribunal Federal decidiu sobre o assunto em controle concentrado de constitucionalidade (ADI 3.150) em sentido contrário. Fixou que a multa é dívida de valor, mas não perde a natureza de sanção penal. Por isso, pode ser cobrada pelo MP.
Como mostrou a ConJur, a posição gerou brecha usada pelas instâncias ordinárias para desobedecer a tese fixada pelo STJ. O resultado foi a judicialização do tema, o que fez com que o STJ, em dezembro de 2019, promovesse a readequação da tese pela primeira vez.
Nesta quarta-feira (24/11), a 3ª Seção fez a mitigação para corrigir uma distorção gerada pela tese, que deixou os hipossuficientes e miseráveis a ver navios nos juízos da execução. Em pedido da Defensoria Pública, concluiu que, na impossibilidade de pagamento da pena de multa, a extinção da pena não pode ser impedida.
Efeitos
Relator dos recursos especiais julgados, o ministro Rogerio Schietti afirmou que a realidade quanto aos efeitos da não-exintição da punibilidade por conta da dívida da multa é chocante, surpreende e causa verdadeira repulsa. “É uma situação que precisa ser corrigida com urgência”, disse.
Sem a extinção da punibilidade, o condenado não consegue a reabilitação, que nos termos do artigo 93 do Código Penal assegura o sigilo dos registros sobre o seu processo e condenação. Sem o sigilo, não consegue a certidão negativa de antecedentes criminais, sem a qual a busca por emprego formal fica extremamente prejudicada.
Enquanto não extinta a punibilidade, permanece a suspensão dos direitos políticos. O condenado não consegue regularizar o título de eleitor. Logo, não pode votar, se matricular em instituição de ensino público, exercer cargos públicos concursados.
Se o condenado não tiver CPF, não conseguirá expedir esse documento, devido à ausência do título de eleitor. Por isso, não obterá carteira de trabalho, crédito em instituições bancárias ou acesso a benefícios sociais, como bolsa família ou auxílio emergencial.
“É um efeito cascata que vai deixando o egresso do sistema prisional cada vez mais alijado da sociedade. E isso dura até a prescrição da multa. Se ela for calculada pelo Código Penal, leva-se anos e anos. Se for calculada como dívida de valor, pode-se estender a 10 anos: 5 da citação à penhora e mais 5 da penhora até a extinção”, citou Rafael Muneratti, da Defensoria Pública de São Paulo.
“Podemos ter o absurdo de os efeitos secundários da condenação durarem bem mais que a própria pena aplicada num crime de furto, roubo ou trafico”, acrescentou.
Ciclo do desespero
Segundo a Defensoria Pública, São Paulo, o estado com a maior população carcerária do Brasil, exemplifica essa situação. O defensor afirmou que o Ministério Público de São Paulo possui convênio com cartórios de protesto para executar multas penais, e que punições de todo e qualquer valor são executadas.
Com isso, são mais de 100 mil multas para execução nas varas de execução penal. Destas, 65% é de menos de R$ 1 mil, e 91% não ultrapassam o limite fixado pela Fazenda Pública persecução de dívidas cíveis, de R$ 20 mil. “Executar uma multa de R$ 1 mil é um prejuízo gigantesco para o Estado”, criticou.
Relator, o ministro Schietti afirmou que o sistema carcerário expõe disparidades socioeconômicas que se projetam não apenas para encarcerar a população mais vulnerável, mas que acaba por reduzir o indivíduo que cumpre a pena privativa de liberdade ao status de pária social.
“O quadro tem produzido uma sobrepunição da pobreza, porque o egresso miserável e sem condição de trabalho durante a pena — menos de 20% da população prisional trabalha, é bom lembrar — não tem como conseguir os recursos para pagar a multa, e ingressa em um círculo vicioso de desespero”, disse.
Assim, condicionar a extinção da punibilidade ao pagamento da pena de multa, para os miseráveis, significa agravar a situação de penúria e indigência e sobrecarregar todo o grupo familiar a que pertencem. Para o relator, isso põe em risco a política estatal de proteção à família.
Também frustra os fins das reprimendas penais e gere a lógica do princípio isonômico, segundo o qual coisas desiguais devem ser tratadas de forma desigual. “Mais ainda”, acrescentou, “desafia os objetivos fundamentais da República, dentre os quais erradicar a pobreza e a marginalização , e reduzir as desigualdades sociais e regionais”.
Sem critério
A proposta da tese contou com a anuência do Ministério Público Federal, conforme expôs a subprocuradora Luiza Frischeisen, e foi aprovada à unanimidade pelos integrantes da 3ª Seção. O desembargador convocado Olindo Menezes sugeriu que mais tarde, em algum caso mais propício, o colegiado se anime a discutir critérios para comprovação de hipossuficiência.
Segundo ele, a tese vai iniciar uma corrida ao Judiciário para buscar essa prova que, na área cível, é feita com a simples declaração do interessado, sujeita à posterior verificação. “Talvez em outra oportunidade a gente pudesse pensar na teoria da insignificância, deslocada para a execução”, indicou.
O ministro Schietti esclareceu que a Defensoria Pública propôs um critério: o limite de R$ 20 mil, o mesmo usado pela jurisprudência do STJ para aplicar o princípio da insignificância aos crimes triburários. É também o valor limite para que a Fazenda Pública ajuíze execuções fiscais de débitos com a Fazenda Nacional. Menos do que isso, a procuradoria não se interessa.
“Refleti e achei que isso não seria possível”, concluiu o relator. “Aqui temos um condenado. Não é alguém ainda quite com a sociedade. A situação excepcional é ele não poder pagar. Concordo que seria muito bom se tivéssemos como fixar um parâmetro. Mas qual seria? A lei não dá qualquer sinal. Vejo com dificuldade”, explicou.
REsp 1.785.383
REsp 1.785.861